Deitada em minha cama, neste domingo acinzentado e absolutamente sozinha, curtindo um álbum da fabulosa Ella Fitzgerard, deixei como de hábito minha mente desprender-se de meu corpo e simplesmente ir aonde quisesse e assim, tranquilamente ela voltou a minha infância e como num filme, foi me revelando o que até então, por questão de imposição de meu consciente, havia sido guardado.
Imaginem que lá por volta dos meus cinco anos, o ciumento de meu irmão contou-me que eu não era filha de minha mãe e como argumento decisivo ele mandava que eu olhasse para mim, para ele e para minha mãe e observasse a cor de nossas peles e os traços fisionômicos e enquanto falava, eu chorava como uma condenada e então, desesperada disse que iria perguntar a minha mãe e aí, ele, ardiloso, garantiu-me que se eu fizesse isso, ela aí é que não iria mais me querer em casa.
Rapaz e eu acreditei... Imaginem que maldade infantil, não tem limites...
Seu argumento mais forte foi: Será que você não vê que ela gosta mais de mim do que de você?
E ele parecia ter razão, afinal, Geninho era o filho perfeito e eu era a menininha apenas do papai.
Que coisa viu!!!
Dalí em diante, minha autoestima foi pro beleléu, pois, volte e meia sem que ninguém mais escutasse ele afirmava que eu era uma bastarda, filha da lata do lixo e que nunca seria nada.
Nesta época, quase 11 anos mais velho, já tinha feito todas as maldades que um serzinho seria capaz de fazer com outro, pois, tinha como esporte e distração aterrorizar-me, incutindo-me medos absurdos, até que em certo dia, ele exagerou e eu, desesperada bati na casa da vizinha pedindo socorro, já que no meu quarto tinha um fantasma enorme, levando-me a uma histeria que custou a ele, uma boa surra de cinto de couro, pois, eu havia rolado as escadas do apartamento e estava muito arranhada e poderia ter simplesmente morrido na queda.
Afinal, ele já era uma adolescente e deveria ter medido os riscos desta estúpida brincadeira.
Minha mãe possessa depois de castiga-lo, abraçou-me carinhosamente e começou a tentar me explicar que não existia nenhum fantasma e que estava tudo bem e que havia sido o Geninho que cobriu-se de um enorme cobertor.
E aí, neste instante, chorosa eu lhe pedi desculpas por ser filha apenas de meu pai.
O que é isso agora, menina???
Então, entre lagrimas torrenciais contei a ela que o meu irmão é quem tinha me dito, já que eu tinha a pele branquinha e era parecida com meu pai.
A coisa, voltou a pegar fogo, mas o importante foi que a partir dali, intuitivamente, jamais deixei de enfrentar os meus temores, assim como, fiz dos amigos homens, que sempre foi a maioria, um pouco meus irmãos, o que explica, a minha predileção, creio que para compensar a falta dolorosa daquele único irmão que eu simplesmente amava e que me rejeitou por toda a sua vida, pois, faleceu em 2014.
Que pena!!!
Portanto, meu querido leitor, tudo tem um fundamento nas nossas ações e reações, nada pode ser banalizado.
Ele era um moreno lindo, inteligente, um artista nato, mas que não aceitou o meu nascimento e transformou o que poderia ser belo, numa enorme indiferença...
E pensar que eu o amava e ainda o amo...
Texto do livro “O que eu ainda não contei” - Regina Carvalho
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