...quase perdi a ingenuidade, mas fui salva por uma força maior, que não se apresentou na época, mas que permaneceu ao meu lado, bem coladinha, protegendo-me dos ataques mais ferozes das camuflagens traiçoeiras, que escondiam as intenções de todo aquele que investia contra mim, sem dó, aproveitando-se do facto de eu estar mais envolvida com os pássaros e as borboletas. Estes nem sempre eram encontrados nos jardins e florestas, mas sim personificados em pessoas que, de imediato, eu percebia precisarem da minha atenção e amor, muito mais do que seguir as rotineiras vielas e avenidas do sistema escravagista.
O meu pai dizia que eu havia nascido com o bumbum virado para o céu, mas prefiro acreditar que, simplesmente, desenvolvi ao longo do tempo uma couraça mais resistente, exatamente pelo amor que sempre tive à vida. Esse amor não me permitiu jamais desistir do belo e do justo que sempre enxerguei em tudo quanto os meus olhos foram capazes de alcançar, fazendo destas visões uma fonte de esperança.
E então, a força do agressor nunca pôde dizimar por completo um espírito e uma alma amorosa, que nele ainda enxergavam o belo sufocado.
De mim, conseguiram tirar o material para abastecerem as suas burras, mas jamais foram capazes de destruir o meu olhar amoroso, o meu sorriso franco, a minha misericórdia através do toque leve de quem só sabe amar sem nada querer retirar, apenas acrescentando uma gota da delícia de se sentir vivendo, mesmo entre os alhos secos e os bugalhos que se apresentam.
Regina Carvalho – 30.9.2025, Tubarão – SC

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