quinta-feira, 18 de setembro de 2025

A CHAGA DA INDIFERENÇA

Estou ouvindo Claude Debussy, depois de dois clássicos do cinema norte-americano, e inevitavelmente penso nas milhões de pessoas que sequer sabem do que estou falando, justamente por jamais terem tido acesso.

Da mesma forma, depois que acordei, tomei café com leite e uma tigela de iogurte com granola. Ainda sinto um pequeno vazio no estômago enquanto escrevo. Mas penso: milhões de outras pessoas sequer têm acesso a qualquer um desses alimentos. Seus estômagos, mais que doloridos, estão vazios de esperança. Enquanto eu, basta levantar-me e ir até à cozinha, escolher o que mais me agrada.


Portanto, quem sou eu para criticar as ações violentas que se agigantam ao meu redor, ou em qualquer lugar onde a fome, o abandono e a indiferença reinam? 

Quem sou eu para julgar aqueles que nada têm, a não ser uma pistola, uma faca ou um estilete como legado em substituição a escolas verdadeiras, tetos seguros e alimentos saudáveis?

Deveria envergonhar-me por fazer parte deste círculo vicioso, ardiloso e hipócrita, que finge a cada instante que a culpa é do “sistema”, da pobreza que só aumenta, da ignorância que sufoca, das drogas vendidas à luz do dia ou nas caladas da noite. Deveria envergonhar-me ao ouvir, de um lado, Lula e Bolsonaro; de outro, ministros, governadores, deputados, senadores, prefeitos e vereadores, todos rasgando o tecido frágil da bandeira do meu país e a tinta borrada da Constituição.

Sim, deveria. Porque consigo sobreviver em meio ao caos, ainda tendo o que comer, onde dormir, o que estudar. Se adoeço, posso tratar-me. Enquanto isso, a esmagadora maioria continua a sentir dor numa cadeira desconfortável de um posto de saúde precário, ou num hospital sem leitos.

Sim, deveria. Afinal, nasci branca, bem alimentada, com acesso a Debussy, Chopin. Como vizinhos, tive Chico Buarque, Vinicius de Moraes e um punhado de políticos filhos da mentira, que jamais defenderam o povo, fossem generais ou civis, de direita ou de esquerda. Sempre unidos como guardiões do separatismo humano.

Afinal, quem sou eu para achar alguma coisa, em meio ao bom e ao melhor que nunca me faltou?

Acordo todos os dias falando de amor, como agora. Talvez seja essa a única forma de não perder o senso de humanidade que ainda me resta.

Regina Carvalho – 18.9.2025 S.C.

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