Hoje amanheci
pensando na miséria e na fome, provavelmente porque longe de meu jardim e de
meus pássaros, além do fato de ter deixado Itaparica, mesmo que seja por apenas
dois dias, e me inserido em uma cidade congestionada como já se encontra Santo
Antônio de Jesus, para mim seja tão radical que eu só consiga pensar nas
inúmeras dificuldades que devam existir no entorno desta cidade progressista e
que aparenta oferecer um bem estar sistêmico a todos os seus habitantes.
O que na
realidade, não é verdade, pois infelizmente, não existe um só lugar neste nosso
país onde haja hegemonia em se tratando de bem estar em todos os níveis.
Todavia, por
incrível que possa parecer, apesar de estar aqui, só consigo pensar na minha
doce, bonita e apaixonante Itaparica, de águas calmas e mornas, do céu mais
azul que conheci e do pôr do sol, simplesmente, fantástico.
Penso nas
belezas que me atraíram, nas energias que me inspiram, mas principalmente,
penso nas pessoas pelas quais me apaixonei, justamente pela inusitada
espontaneidade que para a maioria que chega de fora pode até assustar, mas que
para mim significou, sempre, um amparo e um alívio da hipocrisia com a qual eu
vivera até então.
E pensando
nisto tudo, sinto-me emocionada, pois enquanto escrevo, posso enxergar com os
olhos da mente as infinitas situações já vividas nesses 12 anos, onde me foi
oferecido espaço, carinho e respeito para que eu e minha família pudéssemos nos
inserir, não como turistas ou veranistas, mas como habitantes participativos de
uma vida cotidiana mais calma, menos agressiva e, certamente, bem mais
gratificante.
E nessas
andanças, que confesso terem sido muitas, subi ladeiras, escorreguei em
picadas, derrapei nas lamas, tropecei em degraus, disfarcei lágrimas de
incompreensão, recebi sorrisos francos e, com certeza, cheguei bem próximo de
uma humanidade pessoal.
Humanidade
que me fez refletir no quanto fui “arrogante de salão”, ilustrada através dos
estudos e totalmente estúpida em relação as realidades.
Humanidade
que me escancarou o senso crítico de uma forma jamais experimentada, pois
arrancou, de uma só vez, a camuflagem sistêmica de me sentir magnânima,
entendida nisto ou naquilo, mas sem nunca verdadeiramente além do acadêmico
discurso chegar muito próximo, talvez prevendo uma realidade que, afinal, convenhamos
não é nada agradável.
Falo e
escrevo da fome do estômago, dos olhos vidrados e congestionados pelas inúmeras
carências de uma estrutura orgânica. E falo e escrevo da miséria, que vai além
da ausência do quase tudo, escrevo da miséria que anula a alma, transformando a
criatura num zumbi vivencial sem quaisquer perspectivas existenciais.
Humanidade
que me fez compreender miséria e pobreza, ter e não ter, querer e não poder,
até o deixar de querer ou jamais cogitar querer, sepultando, indelevelmente, o
seu direito em se sentir sendo.
Miséria do
nunca ter tido e sequer se enxergando tendo e, muito menos, articular para quem
sabe um dia, poder vir a ter.
Falo de
mentes opacadas pela desesperança, escrevo da mazela do ter sido abandonado,
penso na humanidade que nos falta e na alienação conveniente e burra que nos
assola e nos empurra sistematicamente para o aprisionamento pessoal e sistêmico
da nossa própria inconsequência social, produzindo com a nossa indiferença a
cada dia, através de cada miserável que nasce, uma mazela a mais ao nosso
conviver.
Então reclamar de quê?
Se o medo que nos assola e as grades
com as quais nos cercamos foram por nós mesmos produzidas
Discursar, prometendo mais o quê, que
já poderia ter sido feito e não o foi?
Penso,
então, no Rio de Janeiro, no bairro elegante de Ipanema, reduto de
intelectuais, políticos, banqueiros e artistas e penso nas favelas que os rodeavam já naquele tempo e que eram, tão
somente, locais residenciais dos empregados desta classe de privilegiados.
Favela era
reduto de gente simples, trabalhadora, que curtia o belo e se empenhava em
garantir seu sustento.
Gente que preferia morar no “Morro”,
justo por ser mais próximo de seus empregos e das delícias do mar, além de
evitar as viagens intermináveis no trânsito e nos ônibus, lotações e bondes
urbanos, que naquela época eram limusines se comparados aos de hoje, metrôs,
vans e o escambal...
E nessa
convivência entre o rico, o médio e o pobre existia a autonomia do querer e o
fazer de cada um, com suas diferenças monetárias e intelectuais, suas habilidades
e talentos, mas certamente faltavam as oportunidades educacionais formais para
todos, todavia, sobrava educação doméstica para todos.
Estes fatos
do dia a dia, ninguém me contou e tão pouco li em livros ou em pesquisas
acadêmicas, eu os vivi como vivo hoje todo este horror perante aos céus, onde
afirmam que “todos” estão tendo as mesmas oportunidades e onde o caos se
instalou de forma nunca dantes visto.
Volto a
escrever sobre a minha querida Itaparica e penso nas muitas e benditas ações
sociais que se desenvolvem e penso que, infelizmente, me parecem apenas
paliativos, para uma chaga que se agiganta, frente aos valores morais e éticos
que se perderam, frente a ganância pelo poder que posso enxergar, mesmo que travestido
de grandes promessas, mesmo camuflado em veementes discursos.
“VOZES D'ÁFRICA
Deus!
ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que
mundo, em que estrela tu te escondes
Embuçado
nos céus?
Há
dois mil anos te mandei meu grito,
Que
embalde desde então corre o infinito...
Onde
estás, Senhor Deus?..”
Castro
Alves, sempre muito atual, nos clamores daqueles que como eu e tantos mais,
choram as mazelas deste mundo de meu Deus.
Regina Carvalho