Quem como eu, jamais sentiu a dor da fome, jamais poderá mensurá-la , na sua devastadora extensão, mas amorosamente, poderá reconhece-la no olhar apaticamente desesperado de quem a sente.
Esta absurda experiência, pude justamente vivenciar, aqui, na nossa incrivelmente bela Itaparica, através do olhar de uma catadora do antigo lixão de Ponta de Areia, que ficava a poucos metros do espetáculo deslumbrante da mais bonita e extensa praia da cidade.
Quando por ela passei, nos demos bom dia, dos muitos que se seguiram em outros dias e então, pude reconhecer a esquálida imagem da desesperança que ainda sorria, fitando-me com os mais esbugalhados e inertes olhos já vistos por mim, que simplesmente, adentraram pelas minhas bem alimentadas retinas, fazendo eu sentir vergonha em estar dividindo espaço com a miséria.
Até então, dela (a fome), só havia conhecido através de fotos, filmes e documentários impactantes, mas nada comparados ao chocante palpável.
Já na praia, sentada e tomando o costumeiro coco gelado, onde muitas ocasiões, lamentei minhas perdas materiais, fitando a imensidão do mar, questionei Deus e tudo quanto, já havia ouvido e lido de explicações dogmáticas e numa rebeldia até então, por mim desconhecida, com ele briguei, afinal, nada, absolutamente nenhum argumento, seria capaz de justificar a miséria humana a não ser o flagelo de uma raça, frente a grandeza da vida.
Nunca mais fui e agi da mesma forma, nunca mais fui capaz de conviver, respeitando a inconsciência disfarçada em brilhos, sons e cores que mantém o outro, numa continuada senzala, onde pretos e brancos, proliferam a incontida fome de tudo.
Pouco tempo depois, tomei conhecimento da morte desta senhora, mas seu olhar, expressando a dor deste mundo infame e cruel, permaneceu vivo em mim, alertando-me em todas as ocasiões, em que a leviandade e a desfaçatez, se fazia presente.
De que adianta sermos capazes de poetizar, se não somos capazes de fazer do outro, espelhos, cujos reflexos, sejam de nós, mesmos?
De que adianta, dobrarmos os joelhos e orarmos, se somos capazes de alimentar a fome com a nossa constante parceria com o impróprio que nos bajula, alimentando a sede de nossas vaidades?
Mais do que nunca, passei a entender o meu Jesus, que nada mais foi que um despertador de consciências, um estimulador emocional, um apenas mortal que se deixou ser considerado imortal, para não deixar fenecer a sua imensa revolta, revestida de amor ao próximo.
“Onde houver desespero, que eu leve a esperança”, mantendo viva em mim, a garra e a determinação nos combates a maldita fome, chaga que reduz o humano a absolutamente nada, quando, apenas finge combate-la.
Regina Carvalho-21.8.2024 Itaparica
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