segunda-feira, 18 de maio de 2020

JESUS E NÓS.



Quando perguntei à minha mãe, porquê eu deveria ir para a escola e ela me respondeu que era para eu ser alguém quando crescesse, confesso fiquei encafifada.
O tempo foi passando e em diversas ocasiões voltei a ouvir dela e de outras pessoas, sempre num tom sério e comprometido com a importância merecida e, eu, cada vez mais fui querendo entender aquela desqualificação pessoal que me atribuíam, afinal, se para ser alguém eu precisaria estudar muito, então, todo aquele que não tinha podido estudar, era o quê?
Claro que fiz inúmeras vezes esta pergunta para variadas pessoas, recebendo também diversas respostas, mas sempre evidenciando-se o estudo como o transporte mais eficaz para qualquer caminhada pessoal.
Bem, é claro que mais adiante me foi possível entender o que realmente queriam dizer, no entanto, o registro deste absurdo linguístico, jamais saiu de minha mente, pois, foi a primeira ilógica e preconceituosa rejeição a vida que detectei. Afinal, o simples fato de um ser humano existir, já deveria lhe conferir o título de ser um alguém, antes mesmo de vir a ser um doutor em alguma coisa, assim também não entendia o fato de, se era tão importante estudar para ser alguém, por que todas as crianças, como os filhos dos serviçais, não tinham o mesmo acesso às escolas?
Mais adiante, o fato de muitas pessoas não serem consideradas “alguém”, me fez compreender que por não serem nada para aqueles que atingiram o status de “alguém”, sequer eram enxergadas e muito menos seus filhos, e então, o pesado fardo do sistema social, desabou sobre mim, assustando-me e, ao mesmo tempo, fazendo germinar em minha cabecinha de ainda uma criança, a certeza absoluta de que eu as enxergaria, estivem elas em qualquer lugar.
Nem podia imaginar que naquele momento, nascia em minha consciência, uma ativista social, sem bandeiras, faixas ou slogans, mas com uma visão límpida da importância da vida na vida de qualquer pessoa, resoluta a lutar para não permitir jamais ao meu redor, que houvesse o maldito separatismo, cruel chaga que ainda não permite que o humano seja a representação bendita do maior milagre da própria vida.
Com a minha longa vivência, abrilhantada por infinitas experiências, posso garantir que  a tal retórica em ser “alguém”, ganhou novas versões, mas pouco se alterou, já que hoje, tem-se muitos “alguéns”, doutores em diversas especialidades, mas também herdeiros da cegueira que os tornam incapazes de evitar a desigualdade, mantendo como sempre, o velho e corroído pano de fundo do “me engana que eu gosto”, garantindo assim, a sempre massa invisível para servir-lhes, e nada mais.
Sou uma irritante chata, que fala e escreve o que todos tentam esquecer e, até mesmo, fingir que não existe.
Todavia, a vida por si só, também é chata, pois, vez por outra, movimenta a terra, rebuliça as mesmices, como agora com o COVID 19, justo para que sejamos obrigados a enxergar o estrondoso exército dos  que não são “alguéns”, assim como todas as inadequações que somos capazes de produzir, mesmo, tendo tantos alguéns charlando abusivamente nos comandos deste mundo de meu Deus, que aliás, não conseguiu fazer de seu filho um “alguém”, já que pelo que se sabe, Jesus nunca se letrou, preferindo, vagar como um errante, pregando a seu modo a grandeza e expertise existente em todo alguém, provavelmente, tão afrontado, mas determinado, quanto eu e tantos outros, com a estupidez que o cercava.


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