De repente,
os cachorros se movimentam frente a um barulho de folhagens nada comum, levanto
o corpo para ver se consigo identificar através da janela e nada vejo e, pelo
visto, nem eles, pois já estão de volta à porta na espera paciente de eu deixá-los
entrar.
- Ainda não,
deixe amanhecer primeiro.
Penso cá com
os meus botões, contrariando minha natureza amorosa, que gosta de tê-los ao pé
da mesa, silenciosos como fiéis guardiões.
Enquanto
travo esta luta boba e desnecessária entre o prazer de ter os meus cães bem
pertinho de mim e a imensa preguiça de levantar desta cadeira para abrir a
porta, ouço fogos à distância e tento descobrir de onde eles vêm.
- Será
do candomblé, ainda da política ou hoje
é dia de algum santo, e eu não estou sabendo?
Enquanto ainda
penso no desnecessário, percebo que de um instante para o outro, o dia
amanheceu. Só que todo este processo levou dezoito minutos para ser concluído,
tempo que precisei para decidir-me levantar e, finalmente, abrir as portas,
deixando meus parceiros das madrugadas entrarem, num ritual cotidiano que me
inunda de prazer.
Já posso
enxergar de onde estou os galhos finos e longos da amoreira repletos de minhas
frutinhas preferidas, e como mantenho a imaginação a galope, posso até associar
os balanços naturais do já presente ventinho do mar, em chamamentos irresistíveis,
nos quais me entrego sem qualquer questionamento, apenas superando o que ora
percebo ser preguiça que confundi com cansaço.
Um pouco
mais distante, um bem-te-vi disputa o palco com pelo menos dois sabiás, que por
suas vezes, disputam comigo o privilégio do deguste das amoras que bem escurinhas
se exibem em um destaque soberbo, adornando com suas raras belezas, este espaço
do jardim.
E enquanto
mordo a frutinha, deixando-a explodir, inundando o céu da boca, provocando em
mim prazer inenarrável, olho ao redor e só enxergo flores.
Lembro-me então, que a primavera chegou e que
daqui pra frente, sua excelência a natureza se fará mais forte, mais vibrante,
bem mais atuante, arrancando de mim o marasmo, a preguiça ou o cansaço, doando
a mim suas cores e seus aromas em uma sempre fascinante presença.
Penso cá com
os meus botões que sou uma troncha abusada que acorda com as andorinhas, come
com os sabiás, escreve ao som dos bem-te-vis e faz de seus três lindos cães,
suas mais constantes parcerias e ainda displicente e muito cara de pau, se dá
ao luxo safado de se dizer muito cansada, com preguiça e coisa e tal.
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