domingo, 3 de janeiro de 2021

CIGARRA CANTANDO



AS CIGARRAS

Lá estava o galho da amendoeira, parceira dos meus cotidianos que sem pedir licença, porque simplesmente jamais precisou, pois, sempre fez parte do cenário de meu quartinho da Barão da Torre, onde comecei a tecer as malhas de meus sonhos infantis e meus ideais de adolescente, mas também a mesma amendoeira, cujo galho mais firme pela passagem do tempo, testemunhou a menina se tornar mulher.

Quantos registros, quanta cumplicidade, infinitas trocas silenciosas de uma profunda amizade que não satisfeita, ainda foi por todo o tempo, residência oficial das cigarras que de sua escora segura, garantia o palco perfeito para que elas, pudessem me deliciar com seus shows de canto longo e derradeiro.

Benditas cigarras que depois de bem sequinhas, deixavam-se cair no peitoril da janela, para que eu solidária, pudesse depois, repousá-las nas terras dos canteiros do jardim, fazendo das roseiras, das margaridas e das samambaias, suas moradas finais, não sem antes, alisar suas transparentes e delicadas asas, desejando também tê-las, assim como o seu poder de canto, mesmo que por apenas instantes de glória, ensinando-me silenciosamente a importância do magnífico e seu espaço no tempo.

Como não associar as brevidades das cigarras com a instantaneidade da paixão, do gozo e da plenitude que vamos armazenando e forjando o que somos?

Bendito galho da amendoeira que atravessou muro e varanda, vindo da casa da vizinha, tão somente para me fazer companhia e para servir de pouso encantado das muitas cigarras que insistiram em poetizar a minha alma de apenas uma menina que se eternizou em mim.

E aí, como posso buscar Deus entre quatro paredes se o vejo a cada instante, no espaço livre de minha mente ágil?

Se o encontro nas árvores, nos frutos, no solo e no olhar de todo aquele que mesmo sem pedir licença, adentra em mim com seus cantos, texturas, aromas e sabores.

Benditas cigarras que se não pude copiar no canto, me inspiraram nos versos das infinitas emoções.

Regina Carvalho.


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