terça-feira, 3 de novembro de 2015

UM RESPIRAR PROFUNDO


Acordei bem cedinho, abri as janelas e portas e fui sentar-me na cadeira de balanço da varanda para esperar pacientemente o dia amanhecer, tal qual, faço por toda a minha vida, numa fidelidade a mim mesma, afinal, como perder tão surpreendente espetáculo?
E assim como eu, lá foram também os meus cachorrinhos que adoram o despertar da vida com seus aromas e sons sempre surpreendentes e juntos, silenciosamente, permanecemos relaxados, não sem deixar, pelo menos eu, a mente voar, e esta, não menos surpreendente, ora arquiteta um futuro que sequer sei se viverei, ora resgata um passado em seus momentos, se não surpreendentes, pelo menos inusitados.
E nesta manhã, ao som de uma refrescante chuvinha de primavera, meu voo foi até Belo Horizonte, pousei no bairro do Santo Antônio ao lado de minha sogra, tentando socorrer uma jovem doméstica que trabalhava na vizinha, que apavorada, (a vizinha) pedia socorro.
A cena dantesca quebrava o encanto da grandeza de um quase amanhecer e, pela primeira vez e única, deparámo-nos com a solidão da ignorância existencial, travestida da crueldade da indiferença de um alguém que acabara de ter um filho, mas incapaz de acolhê-lo em seus braços, olhava o vazio da parede branca, enquanto no chão, envolto em sangue, um serzinho lutava para permanecer vivo.
Enquanto enrolava a criança na primeira toalha que encontrei, prendi o corte brutal de seu umbigo com o pregador que segurava a toalha na corda, enquanto minha sogra retornava ao nosso apartamento, numa corrida contra o tempo, pois tanto a mãe como a filha, naquele instante, precisavam mais que apenas solidariedade, precisavam de um médico.
Hoje, já com o dia amanhecido, ao som do galo do vizinho, fico pensando naquela criança que quase salvamos, naquela mãe que no dia seguinte, voltou andando, apanhou sorrateiramente seus pertences e desapareceu, deixando a vizinha e a nós com as lembranças tristes de sua inconsequência.
Penso na menina e no nome que poderia ter tido, nos amores e nas conquistas, nas tristezas e nas lágrimas, mas acima de tudo, nas auroras que jamais vivenciou, mas que 32 anos depois, permanece ainda viva entre as minhas lembranças, talvez para que eu nunca esqueça que, assim como a vida é bonita e é bonita, o ser humano pode ser feio, medíocre, assustador.
E pensar que naquela época, cheguei a brigar com Deus, crendo na injustiça de seu poder de distribuição de bênçãos, pois enquanto tantas desprezavam, meu regaço estava pronto para acolher uma filha, que nunca chegava.
 Estou sorrindo, afinal, três anos depois, como num passe de mágica, a minha tão sonhada garotinha, adentrou em minha vida, trazendo consigo, Deus, aquele mesmo Deus que espinafrei, mas que generoso compreendeu a minha dor, frente aos abusos e inconsequências com as quais, a vida pode ser tratada.
 Neste amanhecer de recordações, penso que cada amanhecer, traz com ele sensações que nem sempre estamos prontos para reconhecer ou aceitar, mas com certeza, traz consigo a certeza de um respirar profundo, acompanhado da esperança de um novo amanhã, onde então, surpresas maravilhosas podem ocorrer, como ocorreu comigo ao ser presenteada com a morena mais linda do mundo, que ganhou o nome de Anna Paula e está tendo o direito de escrever a sua própria história.
Respiro fundo e então percebo que o sol já vai alto e muitas tarefas me aguardam.


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