Acordei bem
cedinho, abri as janelas e portas e fui sentar-me na cadeira de balanço da
varanda para esperar pacientemente o dia amanhecer, tal qual, faço por toda a
minha vida, numa fidelidade a mim mesma, afinal, como perder tão surpreendente
espetáculo?
E assim como
eu, lá foram também os meus cachorrinhos que adoram o despertar da vida com
seus aromas e sons sempre surpreendentes e juntos, silenciosamente,
permanecemos relaxados, não sem deixar, pelo menos eu, a mente voar, e esta,
não menos surpreendente, ora arquiteta um futuro que sequer sei se viverei, ora
resgata um passado em seus momentos, se não surpreendentes, pelo menos
inusitados.
E nesta
manhã, ao som de uma refrescante chuvinha de primavera, meu voo foi até Belo
Horizonte, pousei no bairro do Santo Antônio ao lado de minha sogra, tentando
socorrer uma jovem doméstica que trabalhava na vizinha, que apavorada, (a
vizinha) pedia socorro.
A cena
dantesca quebrava o encanto da grandeza de um quase amanhecer e, pela primeira
vez e única, deparámo-nos com a solidão da ignorância existencial, travestida
da crueldade da indiferença de um alguém que acabara de ter um filho, mas
incapaz de acolhê-lo em seus braços, olhava o vazio da parede branca, enquanto
no chão, envolto em sangue, um serzinho lutava para permanecer vivo.
Enquanto
enrolava a criança na primeira toalha que encontrei, prendi o corte brutal de
seu umbigo com o pregador que segurava a toalha na corda, enquanto minha sogra
retornava ao nosso apartamento, numa corrida contra o tempo, pois tanto a mãe
como a filha, naquele instante, precisavam mais que apenas solidariedade,
precisavam de um médico.
Hoje, já com
o dia amanhecido, ao som do galo do vizinho, fico pensando naquela criança que
quase salvamos, naquela mãe que no dia seguinte, voltou andando, apanhou
sorrateiramente seus pertences e desapareceu, deixando a vizinha e a nós com as
lembranças tristes de sua inconsequência.
Penso na
menina e no nome que poderia ter tido, nos amores e nas conquistas, nas
tristezas e nas lágrimas, mas acima de tudo, nas auroras que jamais vivenciou,
mas que 32 anos depois, permanece ainda viva entre as minhas lembranças, talvez
para que eu nunca esqueça que, assim como a vida é bonita e é bonita, o ser
humano pode ser feio, medíocre, assustador.
E pensar que
naquela época, cheguei a brigar com Deus, crendo na injustiça de seu poder de
distribuição de bênçãos, pois enquanto tantas desprezavam, meu regaço estava
pronto para acolher uma filha, que nunca chegava.
Estou sorrindo, afinal, três anos depois, como
num passe de mágica, a minha tão sonhada garotinha, adentrou em minha vida,
trazendo consigo, Deus, aquele mesmo Deus que espinafrei, mas que generoso
compreendeu a minha dor, frente aos abusos e inconsequências com as quais, a
vida pode ser tratada.
Neste amanhecer de recordações, penso que cada
amanhecer, traz com ele sensações que nem sempre estamos prontos para
reconhecer ou aceitar, mas com certeza, traz consigo a certeza de um respirar
profundo, acompanhado da esperança de um novo amanhã, onde então, surpresas
maravilhosas podem ocorrer, como ocorreu comigo ao ser presenteada com a morena
mais linda do mundo, que ganhou o nome de Anna Paula e está tendo o direito de
escrever a sua própria história.
Respiro
fundo e então percebo que o sol já vai alto e muitas tarefas me aguardam.
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