Olhando o dia amanhecer nesta terça-feira através da janela à minha frente, pude sentir o leve ventinho frio da madrugada despedindo-se, sem deixar de tocar em mim, arrepiando-me e deixando saudades.
Foi assim, com intimidade amorosa que sempre partilhei com o melhor da vida, na maioria dos meus dias. Afinal, por alguma razão que desconheço, mesmo nas minhas maiores dificuldades, fossem quais fossem, lá estavam os meus amanheceres benditos, com os cantos dos passarinhos, renovando-me as forças e as esperanças.
Os méritos dessa proeza matinal, provavelmente, residem nas magníficas energias da natureza: companheiras inseparáveis, que mantiveram intacta a convivência entre o universo e eu, abastecendo-me de poesia absolutamente natural e de uma dose generosa de resiliência. Esta última ensinou-me a aceitar tudo aquilo que minha sensibilidade e razão identificavam como impossível de ser alterado.
Talvez a presença mais dura tenha sido a da inveja que, por pura maldade, fez-me chorar e conhecer a dor da ingratidão, não apenas uma, mas inúmeras vezes, nos muitos anos em que morei em Belo Horizonte, justamente nos momentos mais delicados, quando eu mais precisava de amparo, acolhimento, partilha e respeito daqueles que me rodeavam.
Por alguma razão que sinceramente desconheço, acabo de me lembrar de um homem alto, forte, sempre vestido com ternos de linho bege ou branco, que era vizinho de cobertura no prédio em que eu morava na Rua Barão da Torre, em Ipanema. Ele me causava uma estranha sensação que, na época, ainda criança, eu não sabia definir, mas que me mantinha firme, embora temerosa, quando ele passava por mim, no pátio do prédio.
Mais tarde, já adolescente, fiquei sabendo que, além de escrever o livro Brasil para Principiantes, que deu o que falar, ele também fora dono de uma empresa chamada Carnê Fartura, que revolucionou a televisão brasileira e se tornou um dos principais anunciantes do país no início dos anos 1960.
Foi então que compreendi a razão da única discussão que testemunhei entre meus pais, pois esse senhor era ainda proprietário de uma fábrica de lingerie infantil, na qual fui a única modelo, sem nunca tê-lo visto no local e sem a permissão de meu pai. Traquinagem amorosa de dona Hilda, minha mãe, que se orgulhava da filha estampada em fotos de propaganda.
Estranha lembrança...
Voltando ao texto: penso que meu corpo e minha mente foram curtidos nos desertos das dificuldades, enquanto minha alma, sem pressa, se aperfeiçoava, lavando-se diariamente nas lágrimas límpidas da esperança, jamais permitindo-se contaminar pela maldade gratuita da infelicidade alheia, incapaz de reconhecer o amor em suas infinitas vestimentas.
Hoje, olhando para trás, escrevo e nada sinto além de gratidão e da certeza absoluta de que nada perdi, pois a vida, generosa, jamais deixou faltar as sapatilhas forradas de tenaz ternura, com as quais pude trilhar, segura e sem ferimentos, as minhas necessárias caminhadas, onde nelas fui colhendo raras e preciosas flores e ainda pude incessantemente registrar todo o esplendor da natureza que, mesmo enfrentando as rudezas das intenções e ações humanas, sempre resistiu: forte, linda, poética e poderosa, tal qual o Deus que sempre imaginei.
Regina Carvalho — 9.12.2025, Pedras Grandes, SC

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