No Natal de 1964, minha mãe estava hospitalizada após uma cirurgia invasiva. Lá estava eu, sentada no quarto do Hospital Samaritano, com os olhos adolescentes fixos na parafernália de tubos que haviam sido introduzidos nela, enquanto minha tia Nair, irmã de meu pai, ao lado da cama, assinava um cheque apoiando-o na própria bolsa, para que sua irmã Helena comprasse um peru para a ceia de Natal que se aproximava.
Imediatamente pensei no quanto minha mãe sofria e, ainda assim, precisava ouvir aquela discussão banal sobre o peso de um peru.
A cena me chocou profundamente e permanece viva na minha memória até hoje. Confesso que já superei a raiva, perdoei a desconsideração, mas a lembrança continua forte como um símbolo da alienação e da indiferença humana.
Na manhã seguinte, ao chegar em casa, fui direto ao altar onde Santa Terezinha e São Jorge eram diariamente reverenciados por minha mãe. Entre flores e velas, desabafei, com lágrimas nos olhos, a minha incompreensão por eles terem permitido mais uma dor àquela mulher que tanto os venerava.
Afinal, não poderiam ter interferido? Onde estava a misericórdia? Que santos protetores eram esses?
Por algum motivo que nunca entendi, fixei minha mágoa em Santa Terezinha, esquecendo-me completamente da inoperância de São Jorge. Ao longo dos anos, toda vez que o ônibus escolar passava diante da igreja dedicada a ela, eu virava o rosto para não a ver.
Hoje concluo que até na fé fui preconceituosa, atribuindo a culpa da “não intercessão” apenas à santa, uma mulher que representava uma fiel aliada de Deus. Essa atitude acabou moldando meu inconsciente, fazendo-me desenvolver certa desconfiança em relação às mulheres, algo que me acompanhou por boa parte da vida, levando-me a confiar quase exclusivamente nos homens.
Talvez daí venha o fato de eu ter tantos amigos do sexo masculino…
Seria coincidência ou reflexo inconsciente daquela velha ferida?
Tudo o que sei é que, na época, com a mente adolescente, eu acreditava que, sendo mulher, Santa Terezinha deveria ter-se condoído e impedido aquele ato abusivo e desumano, achei-a omissa e ingrata.
O tempo passou, e em 1977 a mesma tia Nair, já debilitada num leito de hospital, incapaz de escrever o próprio nome, teve sua digital colhida e postada num testamento alterado do original, elaborado pelo setor jurídico de uma grande instituição religiosa e hospitalar, com a exigência e anuência de sua irmã Helena e de meu pai, assim, seus vastos bens foram distribuídos entre eles. Poucos dias depois, ela faleceu quase em completo abandono.
E assim compreendi que “tudo o que aqui se faz, aqui mesmo se paga”.
A Lei do Retorno é, de fato, implacável.
Regina Carvalho – 2.10.2025, Tubarão/SC

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